Sono maldito

outubro 17, 2017



Domingão de primavera com chuva, frio e bem digno de ficar o dia inteiro na cama alternando entre dormir, se entupir de chocolate e assistir um monte de filmes e séries na televisão.


Mas não para a Paula.
Porque Paula precisava comparecer a um compromisso social importante onde a maioria de seus familiares estaria. Não dava para faltar, infelizmente.

Vencendo a preguiça, saiu da cama e se arrastou sonolenta até o banheiro. Ao olhar para o espelho viu as olheiras enormes que denunciavam a sequência de noites mal dormidas - ela precisaria recorrer à sua base milagrosa que cobria até as imperfeições de sua alma para disfarçar - além das espinhas que eram resultado da sua falta de tempo até para fazer uma simples esfoliação.


Entrou no box, ligou o chuveiro e, por dois segundos, pensou que morreria congelada: ainda no dia anterior fazia um calor digno de verão e ela havia desligado a água quente para economizar na conta de luz. Fechou o chuveiro, mudou a posição da chave e tomou um longo banho, do tipo em que o banheiro é momentaneamente transformado em uma sauna.

Paula se arrumou, olhou no espelho ao final da produção e gostou do resultado: se sentia realmente bonita.
Mas, se pudesse, voltaria para a cama dormiria o dia inteiro.

Chegou ao local do evento. No meio de um furdunço de beijos, abraços e "nossa, como você está ótima!", "veio sozinha? Você não estava namorando?", Paula se dirigiu ao local onde o almoço estava sendo servido e montou seu prato. Comida saudável, como sempre, porque Paula se preocupava com seu corpo e com os resultados de seus exames - o stress do dia a dia já era o suficiente para colocá-la nos grupos de risco de uma série de doenças. Ela não precisava agravar a situação com uma má alimentação.

Sentou-se à mesa com seus pais, seus dois irmãos e um sobrinho que queria unicamente não ser perturbado enquanto assistia vídeos sobre macetes no Minecraft. Exatos quinze minutos depois de terminar sua refeição, Paula já não conseguia mais disfarçar as longas piscadas diante dos assuntos entediantes de seus companheiros de mesa.

- Paulinha, minha filha, você está dormindo sentada!
- Não estou, mãe. Estou apenas refletindo sobre o que vocês estão falando.
- Eu acabei de dizer que você precisa de um gato para te fazer companhia em casa e você sequer grunhiu que é alérgica, como sempre faz!
- Ok, mãe. Talvez eu esteja mesmo um pouco cansada. Preciso dormir.

Neste momento, a piedosa alma de um dos irmãos de Paula se manifestou:
- Ei, pega aqui as chaves do meu carro. Se você deitar os bancos vai conseguir ficar numa posição bem confortável. Ninguém vai notar se você sair de fininho. Na hora do discurso a gente te chama.

Paula apenas conseguiu pensar:
- DEUS TE ABENÇOE POR ISSO!

Pegando as chaves, debaixo de protestos da mãe - que achava um verdadeiro absurdo a filha simplesmente sumir no meio de uma festa para ir dormir dentro de um carro -, Paula se dirigiu até o estacionamento. Destravou o alarme, deitou os bancos como o irmão havia sugerido, abriu uma pequena fresta da janela do banco de trás (apenas o suficiente para não morrer sufocada), improvisou um travesseiro com uma mochila que estava largada no banco do carona e fechou os olhos. Feliz da vida.

Mas o sossego durou pouquíssimo.

Assim que Paula fechou os olhos, um casal jovem se aproximou do carro. Apoiaram-se no capô e ali começaram uma pegação frenética que sacudia o veículo sem parar e impedia Paula de dormir. Com preguiça demais para sair do carro, Paula esticou as mãos, inseriu a chave e ligou os faróis. O casal, claro, tomou um belo susto e saiu correndo, ajeitando roupas e cabelos pelo caminho.

Paula desligou o carro e voltou à sua posição inicial, pronta para cair nos braços de Morpheu.
Quando estava pegando no sono, um pequeno grupo de adolescentes resolveu usar o carro em que a pobre Paula tentava descansar, como mesa enquanto jogavam Imagem e Ação. Os gritos, as sacudidas e o barulho irritante da caneta forçada contra a lataria do veículo fizeram Paula despertar.
Triste, cansada e infeliz, ela abaixou o vidro do carro que estava levemente aberto e pediu com gentileza que o grupo mudasse de lugar.
Ouviu em resposta:

- Caraca tia, tá parecendo figurante de The Walking Dead. Foi mal aí.

Mesmo com o comentário não muito agradável do garoto, Paula sorriu ao ver que o grupo realmente estava se afastando.
Novamente tomou sua posição inicial e fechou os olhos.

No primeiro suspirar mais pesado que deu, Paula foi abruptamente acordada por uma briga de cachorros que acontecia ao lado do carro em que estava. O motivo: um dos objetos do jogo de Imagem e Ação que o grupo de adolescentes estava jogando foi esquecido ali, ocasionando uma briga infernal entre os cães que passavam o tempo no estacionamento.
Paula precisou sair do carro, ir até uma bica próxima, encher um copo com água fria e jogar perto dos animais (não em cima, porque Paula não queria vê-los com frio) para apartar a confusão. Ao ver que a ação havia funcionado, entrou no carro novamente e rezou antes de fechar os olhos pedindo que conseguisse tirar ao menos um cochilo em paz.

Paula estava sonhando com um final de semana no Caribe regado a muitos drinks coloridos e boys-magia sarados a tratando como rainha, quando um grito de criança a acordou. Com o susto, Paula bateu a cabeça no teto do carro e com o dedinho do pé no freio de mão.
Arrasada e muito mal humorada após perceber que tudo não passava de um ataque de pirraça de uma menininha de 5 anos, Paula saiu do carro.
Tentou acalmar a criança, mas quanto mais falava, mais a menina gritava. Tentou todas as técnicas que psicólogos e pediatras ensinam na televisão (sabia todas de cor, para o caso de ser necessário usar com o sobrinho), mas nada adiantou. A garotinha estava simplesmente histérica e parecia ter engolido um aparelho inteiro de Home Theater, pois gritava sem parar em um volume altíssimo.

No auge de seu cansaço e de sua falta de paciência, Paula disse, em tom gutural:
- PARA DE GRITAR PELO AMOR DE DEUS GAROTA IRRITANTE!

A menininha parou de gritar. Mas abriu o berreiro e saiu correndo, assustada, em direção à festa.
Paula ainda estava se arrastando novamente para dentro do carro quando ouviu duas vozes aos gritos:
- SUA MALUCA, VOCÊ ASSUSTOU A MINHA FILHA! - disse a mãe da menininha
- O QUE VOCÊ PENSA QUE ESTÁ FAZENDO? OLHA COMO A MINHA FILHA ESTÁ?!

Paula fechou os olhos e tentou explicar toda a situação, mas já era tarde: ao correr para os pais, a menininha havia tropeçado e caído, abrindo o supercílio e fazendo jorrar uma quantidade enorme de sangue por todo o seu vestidinho florido de mangas compridas.
A mãe, enfurecida, não deixava Paula falar. Enquanto o pai da garotinha a colocava no carro para levá-la ao hospital, a mulher ameaçava Paula descontroladamente, o que fez com que boa parte da festa viesse olhar o que estava acontecendo.

Paula tentava se desculpar, dizer que só queria dormir, que tentou acalmar a criança. Mas a mãe não ouvia, apenas gritava xingamentos e palavras sem sentido. Até que Paula perdeu a paciência e gritou de volta:
- EU NÃO TENHO CULPA SE VOCÊS SÃO PAIS MALUCOS QUE CRIAM UMA CRIANÇA MIMADA E BIRRENTA QUE NÃO DEIXA AS PESSOAS TIRAREM UM COCHILO! AO INVÉS DE FICAR AQUI BRIGANDO COMIGO, VAI LEVAR SUA FILHA AO HOSPITAL, SUA DOIDA!

Foi o suficiente para a mãe avançar em Paula e a confusão aumentar significativamente.
Em um emaranhado de unhas, tapas, cabelos e roupas de festa, as duas se engalfinharam e só se soltaram depois que o irmão de Paula - o dono do carro - e o pai da menininha conseguiram segurar cada um sua respectiva parente.

Mas a dona da festa já havia chamado a polícia e uma viatura que estava muito próxima do local chegou rapidamente para averiguar o caso.
Todos foram levados para a delegacia, exceto a garotinha e a dona da festa, que foram para o hospital fazer um curativo na testa da pequena.

Ao sentar à frente do delegado, Paula explicou que seu único desejo era dormir. Contou sobre o casal que se pegou nervosamente, sobre o grupo de adolescentes que não sabiam brincar de mímica em silêncio, sobre os cachorros que queriam todos o mesmo brinquedinho... Chorou de cansaço.
E aí, em uma atitude inesperada e totalmente abençoada na visão de Paula, o delegado disse que ela ficaria presa em uma cela, sozinha, até que seus familiares pudessem arranjar o dinheiro para pagar a fiança.

Paula caminhou algemada e feliz pelo corredor. Abriu um largo sorriso ao olhar a cela vazia e sem ruídos ao redor.
O policial abriu a porta e ela entrou na cela.
Enquanto sua mãe ameaçava processar até o gramado da festa em que estavam, Paula deitou na cama que havia em seu quarto provisório, fechou os olhos e, finalmente, dormiu tranquilamente até a manhã do dia seguinte.

You Might Also Like

7 comentários

  1. Me reconheci tanto na Paula que não sei porque ainda n tô dormindo!
    Ótimo começo, Helo, como sempre, sem decepcionar!

    ResponderExcluir
  2. #EuNaoSouPaula
    Será que sou excessão?
    Eu me adapto ao horário quase que automaticamente! Mudo todos os relogios da casa por volta das 22:00hs do dia anterior já adiantando uma hora! KKK

    Eu amo horário de verão!!!

    Um abração Helô!!!

    Gostei muito do blog hein!!!

    ResponderExcluir
  3. Fica fácil notar quando alguém faz o que ama, mais evidente ainda quando é você escrevendo. Parabéns pela iniciativa, pelo texto e continuo no aguardo de um compilado impresso.

    ResponderExcluir

Deixe aqui seu comentário.
Lembre-se que respeito é fundamental.

Últimos Posts